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Para meu mestre, Marcelo.
Mestre-aprendiz da liberdade
e da beleza.
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MQ
Val-de-Cães, uma e vinte. O único
aeroporto brasileiro que conheço onde tem um local para fumantes, misto de café
e tabacaria. Hora do embarque. Encontro Camilo saindo da livraria, se é que
podemos chamar de livraria um lugar que só vende alguns tipos de livros. Ele me
abraça com uma ponta de inveja, acho que a mesma que senti quando ele voltou de
Cartagena das Índias embriagado da beleza que viu lá.
Um ministro, numa das crises,
esbravejou que iria resolver os problemas da nossa aviação. Que a distância
entre as poltronas dos aviões seria satisfatória. Queria vê-lo hoje sentado num
voo de carreira. Tenho um metro e setenta e quatro centímetros, peso oitenta e
quatro quilos e não consigo viajar sem estar em profundo desconforto.
Brasília, madrugada de um
aeroporto vazio. Apenas uma pequena lanchonete está aberta e quase limitada ao
pão de queijo sem personalidade, mas toma-se um café expresso com qualidade,
incompatível com o preço é verdade, mas pelo menos ajuda a vencer as horas
solitárias de espera.
Voo cheio, como sardinha em lata.
Porto Alegre, enfim. Tomo o táxi e descubro no motorista um contemporâneo do
Colégio Júlio de Castilhos onde estudei na juventude. No trajeto vamos relembrando
os professores da época. Hélio Riograndense, Fedocegeva, o diretor Magadan, a
velha professora Diva com suas maluquices e nenhum ensinamento de matemática. Muitas
risadas e uma despedida calorosa no final.
Dois dias amorosos com os netos.
Tudo pronto, moeda trocada, aeroporto, tentativa desnecessária de registrar,
chegando lá, o equipamento na Receita Federal. Embarque e, Montevidéu. Um
aeroporto novo e maravilhoso, mas sem um balcão da companhia aérea em que íamos
viajar e sem guarda-volumes. Frustração. Ficamos o fim da tarde, a noite e a
madrugada sem poder sair dali por causa da bagagem.
A primeira aula foi nessa espera, meu
filho e mestre esmerou. Aula teórica e prática. Desvendada a máquina e
aprendidos os conceitos mais modernos sobre fotografia. Depois as aulas
práticas fotografando o Aeroporto de Carrasco, fotometria em meio de muita
conversa e cochilos.
Voo lotado, um pouco mais de
conforto entre as poltronas, mas o cheiro da comida servida incomodou um pouco.
Não sei o que era aquilo, não consegui nem experimentar. Panamá, um aeroporto
que mais parecia um centro de compras popular como os nossos. Muita gente,
muita quinquilharia que nem pude olhar direito. Nosso embarque e, duas horas
depois, a Ilha.
Na bagagem levava um pouco da
juventude, um misto de admiração e perplexidade com o que conhecia daquela
história. Educação, cultura, saúde, segurança e igualdade sem resultar em
liberdade. A maior revolução contemporânea, os maiores heróis contemporâneos, o
maior inimigo que se poderia ter até hoje e, nas últimas décadas, uma ditadura
como qualquer outra, apenas com a diferença de não ter sido patrocinada ou
avalizada, sorrateiramente ou sutilmente, pela maior democracia (apenas entre
suas fronteiras) do mundo.
Certa vez recebi em minha casa o
filho de um dos grandes compositores cubanos, entre vinhos, cigarros e muita
música, conversando sobre seu país, a revolução e a história toda. Em dado
momento ele me perguntou:
– Quantas vezes você esteve em
Cuba?
Respondi nenhuma. Ele ficou
perplexo.
- Como? Como sabe tanto da nossa
história? Do nosso modo de vida?
Respondi a ele que lia, lia muito,
lia tudo que se publicava no Brasil sobre seu país e que tinha muita admiração
por tudo que conseguiram fazer e, ao mesmo tempo, uma tristeza por se perderem no
percurso.
Agora estava desembarcando ali,
com uma sensação de desconfiança, um desassossego que ficou quando li na casa
de um dos meus filhos o livro sobre Guevara, mais de 800 páginas ― O Verdadeiro
Che Guevara de Humberto Fontova. Também havia uma sensação de degradação
colhida no genial livro de Pedro Juan Gutiérrez – Trilogia Suja de Havana, as
duas últimas leituras sobre Cuba e os personagens da Revolução.
Mochilas nas costas, máquina
fotográfica na mão e a fila para apresentar nossos documentos. O funcionário
nos olhou, conferiu tudo e nos filmou por instantes. Encaminhados para outra
fila das autoridades sanitárias que pediam para responder a um questionário
enorme sobre nossa saúde. Quando nos identificamos, deixaram passar sem a
formalidade. Fiquei em dúvida se por causa do seguro-saúde que fizemos para
obter o visto de entrada, tarefa não muito fácil, ou se por algum convênio
firmado entre nossos países.
Agora esperar as bagagens, uma
demora não superior aos nossos aeroportos. Um equipamento bem envelhecido, o
saguão quase sombrio com pouca luz e outra fila para exame de bagagem, que não
consegui entender nem pude perguntar, já que ao ver nosso passaporte nos
mandaram seguir.
Trocamos moeda apenas para chegar
ao hotel, o CUC vale 80% do dólar. Tomamos um táxi. O motorista não nos deu
muita oportunidade pra conversa. Durante todo o percurso, pudemos perceber que
as ruas, as casas americanizadas não são muito diferentes das cidades
brasileiras, exceto pela poluição visual, que ali não havia. Tampouco era
infestado de propaganda política, para minha surpresa. Havia, sim, uma aqui
outra ali, exaltando o governo, os princípios e valores da revolução; nada como
no Brasil, onde os governos gastam fortunas se enaltecendo e tentando
transformar em verdade o que lhes convém. Ali era diferente, tudo estava
baseado numa história verdadeira, vivida e honrada por todos que a quiseram.
Chegamos ao Habana Libre, um hotel
construído faz cinquenta anos pelos americanos e inaugurado pouco tempo antes
da vitória da revolução. Surpreso, íamos ficar os primeiros dias ali – símbolo
da tomada de Havana, a primeira sede provisória do governo revolucionário.
Envelhecido, mas muito confortável e com um serviço impecável.
Um banho rápido e descemos apenas
para jantar e fazer pequenas descobertas ali mesmo no saguão do hotel. Mapas,
interurbano, internet, café, câmbio, tentativa de alugar um carro, essas coisas
práticas. Em pouco tempo o cansaço tomou conta principalmente do Marcelo. Dormi
depois de longa reflexão sobre tudo o que conhecia da história cubana e a
emoção de estar exatamente ali, naquele hotel.
Fazia um frio moderado quando
acordei no meio da madrugada e fui pra sacada fumar e observar a cidade.
Perdera completamente o sono. A rua da esquerda, iluminada como estava, foi o
convite para a primeira fotografia e depois para descer, tomar um cafezinho na
lanchonete aberta vinte e quatro horas. Dali iria procurar a esquina que via da
sacada imaginando a fotografia de outro ângulo.
Um café, depois outro enquanto
conversava com o garçom, respondendo muito mais que perguntando; surpreso em
ver marcas de cigarros e bolachas brasileiros, bebidas americanas e muitos
produtos do mundo capitalista. Foi quando descobri que não era muito comum
brasileiros em Havana e a adoração deles pelas novelas brasileiras e pelo nosso
presidente.
Já com o dia quase amanhecendo,
resolvi ir procurar a esquina da fotografia e, à medida em que andava, fui percebendo,
as ruas não estavam desertas. Primeiro fui abordado por um casal de carro, a
moça me pediu fogo. Quando perguntaram e respondi que era brasileiro, me
convidaram para ir ao Malecón. Agradeci e, antes de andar um quarteirão, três
garotas me pararam e pediram fogo de novo, mais um convite para beber rum. Não
completei a volta nos quarteirões em volta do hotel e fui abordado mais duas
vezes, por um casal e na outra por três rapazes, pelo mesmo motivo e com o
mesmo convite. Medo, nenhum. Sabia estar seguro nas ruas de Havana. Uma
segurança intuitiva, mas baseada no que conhecia da história do povo cubano e
em alguma informação de amigos que ali estiveram. Sem encontrar a rua que
queria fotografar, resolvi retornar ao hotel e aos cafezinhos. Lá encontrei as
três moças que vieram falar comigo e me convidaram pra sentar, o que
educadamente agradeci reclamando de sono. Um misto de boemia e prostituição não
tão diferente das madrugadas de nossas cidades.
Amanhecia quando voltei a dormir
para acordar umas duas horas depois, Marcelo nem se mexia, resolvi deixá-lo
descansar e novamente fui pra sacada fotografar a manhã de Havana, daí para
mais cafezinhos e outra volta pelos arredores do hotel e muita conversa com os
porteiros, agentes de turismo, garçons, taxistas – era inevitável a novela “A Favorita”,
Lula e nosso futebol nas conversas.
Tomamos um café da manhã como
poucos que já vi servirem. Uma pianista tocava primorosamente obras de
compositores do mundo todo, não faltou Aquarela do Brasil e Garota de Ipanema,
músicas americanas, francesas, argentinas, mas cubana que era o que mais queria
ouvir, nenhuma. No saguão tentamos
alugar um carro para viajar pela Ilha. No fim do ano as locadoras não dão conta
da demanda. Ficamos na fila.
Saímos do hotel, máquinas
fotográficas na mão, sem destino. Descemos a principal avenida que ladeava o
quarteirão e chegamos ao Malecón. Por ele caminhamos até resolvermos nos
enveredar por uma rua que imaginamos ser de Havana Velha e, confesso, nos
assustamos um pouco com o espanto das pessoas nos olhando, alguns nos
oferecendo charutos, outros querendo saber de onde éramos, alguns nos pedindo
fogo e até mesmo dinheiro. Caminhamos e caminhamos por ali, fotografando o
casario, cenas de rua e, vez ou outra, as pessoas.
A mulher estava debruçada na
sacada do quarto andar. Combinando com o varal de roupas, seus trajes
misturados com a luz e a sombra formavam a fotografia. Da calçada me preparei e
fiz um gesto pedindo permissão. Ela retribuiu espalhafatosamente dizendo
não.
Alguns quarteirões adiante, ainda
meio frustrado, deparei com um senhor muito magro sentado numa poltrona rente à
janela do segundo andar, nas mãos uma bengala de apoio e no olhar um vazio.
Parecia um quadro pintado e esquecido na parede. Tomei coragem e gesticulei
pedindo permissão para a fotografia. Ele quase só com o olhar permitiu e
continuou impassível olhando o nada.
Por aquele emaranhado de ruas, nos
pequenos prédios envelhecidos, nas pessoas nos olhando com estranhamento, tivemos
o primeiro contato com Havana e seus habitantes fora do circuito turístico.
Nossa caminhada nos levou a uma praça onde sentamos e ficamos por muito tempo
observando os passantes e conversando, tentando desvendar o que vimos na
caminhada.
Tudo muito parecido com nossas
cidades, tênis de todas as marcas e tipos, camisetas com desenhos ou marcas
estampadas. Pirataria? Talvez, mas isso não tinha nenhuma importância para
nosso olhar. O que causou certa surpresa foi ver que, mesmo com suas carências,
eles queriam estar ou precisavam estar usando coisas muito comuns no mundo
capitalista. Talvez trazidas ou enviadas por algum parente vivendo fora da
Ilha.
Tudo bastante velho, mas limpo,
muito limpo. Parecido com minha infância no interior, pobreza digna, muito
digna. Sentados ali observamos os carros antigos passarem. Um espetáculo. Como
um museu automobilístico a céu aberto. Vez ou outra passava uma carroça, um
carro novo, um transeunte pedindo fogo.
Resolvemos andar mais e chegamos a
uma grande praça com inúmeros prédios históricos, museus, teatro, hotéis,
construções espetaculares. Umas muito antigas, outras nem tanto. Ali estava o
Capitólio – no seu gramado foi o único lugar onde vi alguns garotos jogando
futebol, o Teatro e o que me pareceu o centro principal frequentado pelos
turistas. Voltamos ao hotel fazendo um caminho paralelo pelo mesmo bairro, mas
cortando por dentro sem passar pelo Malecón.
Bastante cansados pela caminhada,
nem nos animamos a sair à noite, o jantar foi no hotel mesmo e depois conhecer
as exposições fotográficas em seus corredores, saber como nos comunicar com o
Brasil por telefone e internet, esta cara e sem muita qualidade. Ver mapas,
como nos movimentar se não conseguíssemos alugar o carro e traçar nosso roteiro
pelas províncias, trocar moeda, enfim, todas as coisas que precisávamos saber.
Com o mapa na mão, descobrimos que
o bairro por onde passamos em nosso primeiro dia não era Havana Velha, e sim
Havana Centro, mais popular e não muito acostumada com turistas, por isso o
espanto das pessoas em nos ver por ali.
Manhã ensolarada, clima muito
agradável e lá fomos nós, café da manhã, a mesma pianista do dia anterior,
tentativa da alugar o carro com outro agente de turismo e depois a Universidade
de Havana a poucos quarteirões do hotel.
Marcelo, quando saímos, recomendou
dando continuidade ao que me ensinava – fotografe, fotografe tudo, aprender é
ir fazendo. Minhas dificuldades com a fotometria foram diminuindo e o olhar
aguçando. Quase um transe as mais de setecentas fotografias tiradas no dia,
resultando em umas cem, depois da triagem.
Os prédios muito parecidos com os
das universidades americanas que vemos no cinema. Ambiente universitário igual ao
que temos no Brasil, muitas árvores e estudantes por todo lado, num clima de
liberdade. Muitos com seus computadores pessoais, outros namorando e as
pequenas rodas de conversa. Perambulamos por ali uma boa parte da manhã.
Entramos numa sala de aula de
física, conversamos com alguns alunos rapidamente e, estranhando os poucos
alunos na sala, soubemos que em Cuba a média de alunos por professor é de 38,
que o índice de analfabetismo é zero.
Isso mesmo, zero.
No quarto do hotel em que
estávamos, a camareira deixou um pequeno bilhete nos desejando feliz estada e
se colocando à nossa disposição talvez com o objetivo de conseguir uma gorjeta,
mas o que chamou nossa atenção foi sua letra e a redação do bilhete. Nos
últimos dias em Havana, antes da volta, noutro hotel, pudemos comprovar com o
bilhete de outra camareira o nível da educação. Assim foi em todas as Províncias
que conhecemos. Não há como não admirá-los por isso.
Andando pelo campus comprovamos
como funciona o ingresso na Universidade; há uma seleção parecida com a nossa,
mas que leva em conta outros fatores, como a região e as carências por
profissionais no país. O estudante do interior da província recebe uma ajuda
para moradia e sustento, tem sua própria caderneta para compras, específica
para estudantes ― incluindo o cigarro e o rum. Obrigatoriamente participam de
programas comunitários.
Dois deles se prontificaram em nos
mostrar outros aspectos do campus quando já íamos saindo, assim subimos de
volta pelas escadarias laterais. A abordagem foi muito criativa. Marcelo
fotografava os degraus da enorme entrada principal da Universidade quando um
deles se aproximou e disse quantos degraus tínhamos pra subir e, depois dando a
entender que pelas laterais era menos cansativo. Com eles percorremos uma parte
de corredores, sem que nada nos fosse mostrado de novidade. Falaram de um
professor brasileiro que não chegamos a encontrar.
Perambulamos por ali sem ver nada
que já não tivéssemos visto, mas a conversa era agradável e acabou nos levando
a um bar frequentado por estudantes, uma espécie de clube onde sentamos e
falamos de literatura, cinema, música, poesia e da vida cubana e brasileira.
Ouvimos a poesia de um deles, presenteei os dois com obras minhas que levava na
mochila. Conversa normal, rum, mojitos,
nossos dois novos amigos cultos o suficiente para esse tipo de conversa até
que, ao falar de Martí, perguntando onde encontraria seus livros, um deles se
prontificou a me conseguir a obra completa numa livraria da Universidade que
ficava ali perto. Saiu e voltou com duas medalhas cunhadas com a estampa de Che
Guevara, nos presenteando, mas frustrado por não ter encontrado nada de José
Martí, explicando que a carência de papel impossibilitava a reedição da sua
obra. Neste ponto a conversa virou uma sucessiva reclamação de falta de livros
escolares, de material como CDs virgens para copiar livros e publicações etc.
Aí veio o pedido de dinheiro para ajudá-los na aquisição desse material.
Marcelo mais antenado que eu neste
momento trocou um olhar de “vamos embora”, pagamos a conta que incluía as duas
moedas presenteadas, ajudamos os dois com alguns pesos e saímos como se fôssemos
para o hotel. Na primeira quadra que andamos, resolvemos mudar o caminho.
Quando saímos do Brasil sabíamos ser possível encontrar este tipo de abordagem
em Havana, como existe no Brasil, mas não imaginávamos no ambiente
universitário.
Dali seguimos, contornando o campus,
para a praça da Revolução. Uma torre enorme, um descampado rodeado de prédios
onde ficam os Ministérios, dois deles de uns doze andares, com a reprodução do
rosto de Guevara e Camilo Cienfuegos ocupando uma parede lateral inteira. Lugar
para a multidão assistir aos discursos enormes de seus governantes.
Por uma grande avenida que cruza a
praça, caminhamos até o Cemitério Cristóbal Colón, um verdadeiro museu.
Visitação paga e ali estava o maior cemitério da América Latina. Quatro Capelas
numa praça central, de cada uma delas sai uma avenida larga para os milhares de
túmulos, muitos são suntuosos e ornados com obras anônimas de muita beleza.
A volta fizemos a pé, caminhando por
outra avenida, parando para descansar numa praça muito arborizada. Mal acendi o
cigarro, um passante parou e pediu fogo entabulando conversa. Ali ficamos por
mais de uma hora com ele. Era aposentado da Marinha Cubana. Conhecia o Brasil,
precisamente Fortaleza, e conhecia o mundo quase todo. Falou sobre suas
experiências e sobre a vida em Cuba e me respondeu o motivo de tantos pedirem
fogo – eles não têm fósforos suficientes, então cada família pode comprar
apenas uma caixa por mês no preço subsidiado pelo governo. Contou também que
sair do país era uma questão econômica e não política, ele mesmo já havia
passado férias na França a convite de um amigo francês. Podem, se formalmente
convidados, visitar outros países. A autorização demora um pouco, mas não tem
nenhum entrave desde que as despesas sejam custeadas por quem convida. Falei
dos boxeadores que, no Brasil, fugiram da delegação esportiva e foram depois
deportados, e ai ele me explicou que neste caso eles estavam representando o
Estado, dai as punições são previstas. Isso valia para qualquer profissional
representando o Estado Cubano.
Com ele ficamos sabendo detalhes
de muitas Províncias, o que nos ajudou muito na definição de onde ir primeiro
ou mesmo não ir. Era um entusiasta do rum de Santiago de Cuba, Província que
não nos recomendou, nem Guantánamo, onde pretendíamos ir, e ainda nos falou da
canção Guantanamera, que significa o feminino de quem nasce em Guantánamo, e
muitos, pensam ser o nome de uma cidade.
Fumando mais um cigarro, agradecemos
o papo certos de que ele nos pediria alguma coisa como os dois estudantes
universitários, mas não o fez. Nos acompanhou até umas duas quadras e se
despediu alegremente para ir buscar uma garrafa de rum que haviam lhe trazido
de Santiago.
Chamei a atenção do Marcelo para a
moça bonita parada na esquina do cruzamento fazendo sinais com a mão para os
carros. Prostituição? Naquele horário? Não fazia sentido. Depois de encontrar
muitas cenas como aquela é que vimos que se tratava de um pedido de carona. As
mulheres bonitas conseguiam carona facilmente.
Hotel, cafezinhos – um dos
melhores que já tomei. Era só aparecer na lanchonete que o balconista de longe
já fazia o gesto e dizia ― curtito.
Muitas vezes sentado no balcão com
um curtito deixava o pensamento me
levar para o passado naquela história que conhecia tão bem e ao mesmo tempo
imaginar aquele presente encurralado por embargos, falência do maior parceiro,
aposta errada na vocação agrícola e ninguém fora de suas fronteiras enxergando
que a prioridade era o homem, a solidariedade transcendeu qualquer regime político.
O socialismo cubano não tem similar no mundo. Dava pra sentir outra têmpera
naquelas pessoas, tão parecidas conosco em alguns aspectos e tão diferentes
quando ousaram fazer suas escolhas. Naquelas primeiras 48 horas, uma sensação
de liberdade parada no tempo, de simplicidade na altivez de terem se construído
de alguma forma foi o que mais percebi.
Acordamos tarde, e agora com o
mapa da cidade na mão, saímos para conhecer Havana Velha. O táxi nos deixou
perto do começo do Malecón. Ainda sem almoçar naquele meio da tarde, resolvemos
entrar num restaurante. Da varanda avistávamos a Baía de La Habana, que mais
parece um canal, o Forte San Salvador do outro lado e o Malecón. Vinho, um
farto almoço, que durou até quase anoitecer e a troca de impressões. Às vezes
voltávamos em conversas tidas no passado, em casa, madrugada afora, quando
apontava o que conhecia da vida cubana e era contestado pelo companheiro saindo
da adolescência e pela Roseli, minha mulher. Agora tanta coisa se confirmando,
ao mesmo tempo que tantas perguntas ficavam sem respostas. Estávamos cansados e
resolvemos voltar ao hotel. Lá conseguimos falar com o Brasil por telefone e,
apesar do preço alto, pela internet.
Nossas caminhadas pediam cama,
pediam um banho na banheira sem tampa e na madrugada, Marcelo ainda se
recuperando da agitação do seu cotidiano em Porto Alegre, dormia muito. Eu
varava a noite entre cochilos, curtitos,
cigarros e muito papo com os funcionários do hotel e da lanchonete.
O Habana Libre, imponente e até
bem cuidado, era referência importante, primeira sede do governo
revolucionário, lugar preferido para os primeiros dias de quem visita o país.
Os turistas chegam e saem a toda hora. Ficam dois, três dias e depois se esparramam
como fizemos, procurando acomodações mais baratas ou indo conhecer as
Províncias.
Em nosso terceiro dia é que de
fato conhecemos Habana Vieja. Foi deslumbrante, a arquitetura, os museus, a
limpeza e as praças. Na que paramos para almoçar, um conjunto tocando música
cubana. Os músicos no intervalo sentavam-se à mesa ao nosso lado. Inevitável
puxar conversa com a flautista depois de comprar o CD. Ao saber que éramos brasileiros,
o interesse aumentou. Conversamos muito e a ela perguntei o que conhecia da nossa
música e a resposta foi de emocionar, conhecia Chiquinha Gonzaga, como? Perguntei
e ela respondeu que estudava no Conservatório a obra da nossa Chiquinha, tão
esquecida em nosso país.
Encontramos numa praça um sebo a
céu aberto e lá achei a obra poética de Jose Martí que procurava. Fotografamos
muito. Marcelo parecia um caçador, ficava tempo esperando a fotografia. No
fundo da praça, o museu e o guarda com quem fiz amizade, e em todas as muitas
vezes que ali estivemos sempre parava pra um dedo de prosa. Neste primeiro dia
que o conheci, estavam descarregando um caminhão, primeiro cadeiras, depois
instrumentos musicais, e logo uma orquestra tocava ali. Os músicos assinavam
ponto antes de se prepararem pra tocar. Velhos e moços misturados num
repertório com músicas do mundo todo, muito bem escolhido e executado com um
apuro que impressionou. Dois maestros se revezando com uma maestrina muito
nova, impecável. Era uma sexta-feira, pouco mais que meio da tarde.
Uma sensação de estar em qualquer
parte da Europa parecia impregnada nas ruas de Habana Vieja. Por ali ficamos o
dia todo e uma parte da noite. Depois o Habana Libre e a madrugada entre o sono
de poucas horas intercalando a seleção das fotografias tiradas no dia, alguns
cafés na lanchonete e muitos dedos de prosa com meus novos conhecidos.
Saímos, manhã bem cedo, de táxi
para Habana Vieja e de lá num ônibus de turismo, aqueles que têm a parte de
cima aberta, como em outras cidades do mundo, para percorrer um circuito
turístico completo. Ideia do Marcelo, fazer isso e escolher aonde iríamos
naqueles poucos dias antes da Germana chegar do Brasil e seguirmos para
conhecer as Províncias. Percorremos todos os pontos turísticos e pudemos
descartar o que não nos interessava voltar ― como a Marina Hemingway, num
bairro que nos pareceu o mais novo de Havana. A duração do passeio nos permitiu
escolher primeiro conhecer la Cabaña, complexo militar construído por
espanhóis, todo restaurado e muito bem cuidado. Na sua entrada um quarteto
tocava música cubana, ali me espantei com a qualidade da melodia, do ritmo, da
harmonia tirada de instrumentos quase rudimentares.
Os monitores se encantaram com o
fato de sermos brasileiros, e isso me possibilitou entrar em uma sala onde
antigamente armazenavam óleo para o farol. O lugar parecia intocado, em declive
os recipientes de barro eram enormes e davam para um embarcadouro. Ali fiquei
por algum tempo fotografando na incumbência de trancar a porta. Marcelo
enquanto isso fazia a mesma coisa num salão que estava sendo restaurado,
aproveitando o mesmo encantamento. Coleção de armas, mapas e instrumentais de
época, um avião destroçado no meio do pátio que inicialmente pensei ser o do
acidente que matou Camilo Cienfuegos, as áreas e a construção imponente
posicionada de tal forma que tinha visão panorâmica de qualquer ponto que
estivéssemos. Voltamos no fim da tarde após bisbilhotar por um portão o pátio
de fora do complexo onde vimos alguns tanques de guerra e outras armas pesadas
apodrecendo no relento. Aliás, os únicos lugares que vimos armamento foram ali,
numa igreja em Trinidad, na verdade um museu dentro de uma igreja, e em outro
museu em Habana Vieja.
Hotel, nossa última noite no
Habana Libre. Íamos procurar outro hotel para os poucos dias daquela etapa da
viagem. O Riviera ficava no final do Malecón e era confortável. Também ali um
bar/café funcionava vinte e quatro horas. Deixamos as malas e saímos direto
pras ruas de Habana Vieja, onde perambulamos até a Igreja de São Francisco de
Assis e o bar de frente onde entabulamos, entre uma cerveja e outra, uma dose
de rum e outra, uma reflexão sobre o que já tínhamos visto e percebido. Sempre
a mesma conclusão, mais perguntas do que respostas.
Foi aí que o nosso vizinho de mesa,
que tomava um café sozinho, entrou na conversa. Era brasileiro e conhecia bem
Havana. Estava de passagem para a Europa, um jornalista que vivia no Acre e
depois de trabalhar na campanha política estava indo passar o Ano Novo na
França com um escritor e amigo brasileiro muito importante. Ficamos conversando
por horas, ele estava no mesmo hotel e nos deu referências de restaurantes,
casas onde tinha boa música e outras coisas mais. Combinamos de sair juntos
para um clube de jazz que ficava próximo ao hotel. Lá, boa música sem dúvida. Tocava
naquele dia, como convidado, um percussionista japonês. O estranhamento foi que
todos tocavam lendo a partitura integralmente, nenhum improviso. Tudo escrito.
Voltamos já bem tarde e combinamos
jantar juntos, era Natal e seguimos nosso novo amigo para um restaurante que
era ao mesmo tempo uma escola de culinária. Bom vinho e comida, mas o melhor
foi nossa conversa pela madrugada que trouxe uma frente fria vinda sabe lá de
onde. Naquela noite fizemos também o bota-fora do Nelson, que seguiria no outro
dia pra Europa, passaria o Ano Novo na casa de seu amigo brasileiro.
feliz navidad!
Sou ateu, por isso o Natal para
mim não passa de uma festa social. Em Cuba ele não é comemorado da forma que
conhecemos, com o apelo comercial e religioso. Parece que nem é a data.
Além do jantar com o Nelson, o que
mais fizemos foi preparar uma brincadeira para a família através de um pequeno
vídeo gravado com lente especial desejando “feliz navidad” que enviamos pela
internet.
No Riviera, os quartos menores,
mas nem por isso desconfortáveis. A vista, em dois janelões, dava para o mar do
Caribe. Banheira sem tampa, o que já era esperado ── tenho o que costumo chamar
de síndrome do Vinícius, gosto muito de ler dentro de uma banheira como fazia
nosso poetinha, por isso minha demanda pela tampa. O café da manhã era bem
simples, mas serviam um arroz com feijão saborosíssimo. A lanchonete, aberta
dia e noite, ficava ao lado do saguão e tinha o mesmo movimento da do Habana
Libre. Todos os dias quando chegávamos, tomava ali meu curtito e observava a beleza da mulher sentada no balcão, cada dia
uma diferente e nunca mais de uma.
Num começo de noite ao chegarmos,
sentei no balcão e pedi um café. A moça que estava ao lado tomava uma bebida, era
muito bonita e sensual, se vestia muito bem e me abordou pedindo para pagar uma
dose. Respondi que não poderia. Ela perguntou por que, se não a achava
atraente. Respondi que a achava muito atraente, mas era casado e que no Brasil
um homem casado não pode pagar bebida para uma mulher, principalmente bonita
como ela. Tomei meu café e subi para o apartamento. Umas duas horas depois,
quando descemos para sair, fui tomar outro café e lá estava ela, sentada no mesmo
lugar e parecia com a mesma dose de bebida no balcão. Abordou de novo pedindo
para pagar uma dose sem lembrar de que já havia feito isso. Respondi do mesmo
jeito e fiquei imaginando alguma droga provocando o esquecimento na mulher
linda, sensual e bem vestida. No outro dia conversando com o garçom, ele me
explicou que era permitida uma daquelas mulheres acompanhantes no balcão por
dia, que elas eram pessoas de situação financeiras muito privilegiadas e
escolhidas a dedo para fazer ponto no hotel.
De manhã saímos para Habana Vieja
onde passamos o dia todo andando pelas ruas, voltando a lugares que já tínhamos
ido e conhecendo novos. Muita música nas ruas e praças, muitos museus e o
cuidado enorme com a arte. A valorização do ser humano, pura e simples,
desmistificada em meio à carência material latente. Na volta resolvemos
caminhar pelo Malecón – quatorze quilômetros até o hotel e um pôr do sol
deslumbrante, muitas paradas para fotografias e para observar o casario
castigado pelo tempo, pela falta de recursos, mas sendo recuperado em alguns
pontos.
Nesse dia havíamos feito contato
com um pessoal que preparava as maquetes para obras de restauração. Que
trabalho sensacional presenciamos. Perguntamos de onde vinha o recurso para um
trabalho daquela monta, e a resposta cheia de orgulho, de um fundo
internacional para recuperação do bairro de Habana Vieja, patrimônio cultural
da humanidade.
Por indicação de um dos desenhistas,
caminhamos por umas duas quadras e entramos numa das obras em andamento, um prédio
de dois andares com o trabalho de restauração já em fase final de acabamento. Os
operários, com a consciência do que faziam, nos deixaram perplexos, que esmero
com o ofício de recompor cada detalhe e que dedicação ao que faziam. Identifiquei
na hora o mesmo zelo do meu sobrinho Manoel Filho com sua bem sucedida Biapó no
Brasil e me veio o mesmo pensamento de um dia visitando uma obra que eles
estavam restaurando ― restaurar é sem dúvida quase uma liturgia.
A partir desse dia começamos a
observar o que já havia sido restaurado e o que estava em andamento. São
inúmeras obras prontas e muitas sendo realizadas em Havana Vieja e no Malecón.
Era nosso último dia no Riviera,
voltaríamos ao Habana Libre para esperar a Germana, que chegaria do Brasil e lá
ficaríamos por dois dias antes de ir conhecer as províncias. Saímos por toda a
manhã, antes de fazer a mudança de hotel. Ficamos caminhando pelas imediações da
Igreja e Convento de São Francisco deixando a Casa de las Américas para outro
dia.
Fotografando. Eu, quase
obsessivamente, e Marcelo com aquela calma de esperar a fotografia ficar pronta
no espaço, como querendo me dizer, sutilmente, agora vai com mais calma.
Nos altos do Convento seguíamos
com a câmera o grupo de palhaços que todos os dias faziam uma caminhada pelas
ruas de Habana Vieja alegrando os passantes. Uma senhora vestida de preto
debruçou no parapeito para olhar o grupo. Dei dois passos pra trás e ali estava
a fotografia; pegando a senhora, o parapeito e as pessoas na praça rodeando o
grupo de palhaços. Fotografei e voltei pra dentro do convento. Marcelo depois
de quase uma hora me encontrou no saguão. Rindo, me mostrou a fotografia em
preto e branco da mesma senhora de costas quando soltava a fumaça do cigarro.
Ali estava o Mestre de quem escondi a que fizera.
Chegamos ao Habana Libre no meio
da tarde, almoçamos lá mesmo. Germana chegaria por volta das cinco da tarde,
então não saímos mais, exceto para alguns curtitos
na lanchonete, no mais era preparar nosso possível roteiro em Havana com ela.
Mal chegou, já saímos pra Habana
Vieja, agora com um diferencial, ela fala fluentemente espanhol. Enquanto
estávamos sós, eu e Marcelo andamos muito pelas ruas, identificamos lugares em que
não entramos para esperar sua chegada e conhecermos juntos. Museus, teatros e
um tanto de espaços culturais. Naquele mesmo fim de tarde, saímos para uma
pequena volta e logo retornamos ao hotel, onde jantamos e não saímos mais.
Durante o jantar, descobrimos que
estávamos agora em apartamentos no mesmo andar em que, durante o início da
revolução, o governo se instalara. O apartamento onde fiquei fazia parte do
gabinete do comando, talvez sua sala de recepção. Foi inevitável imaginar o que
teria se passado ali, tropas ocupando todos os andares do hotel, muitas
demandas por uma organização inicial, uma alegria misturada com a desordem da
hora, como quando a Província do Grão-Pará aderiu à Independência do Brasil e,
no nosso caso, ocasionou o vandalismo excessivo provocando a repressão que foi
a origem do famoso episódio do Brigue Palhaço (navio de nome São José
Diligente), um dos fatos que gerou a Cabanagem.
Minha imaginação intuía que a
euforia foi predominante, mas as lideranças tinham de fato controle e
consciência do que faziam. Não havia como não sentir uma emoção diferente ali.
A maior revolução, os maiores heróis e o maior inimigo dos tempos modernos,
tudo isso estava impregnado naquelas paredes e até na falta da tampa da
banheira.
Foi uma noite de muitas reflexões
e poucos cochilos fazendo a curadoria das fotografias dos últimos dias. Cada
imagem na tela do computador me remetia a uma comparação – IDH é o 51º, o nosso
84º, nossa média de anos de escolaridade é de 7,2, enquanto em Cuba é de 9,9, e
a mortalidade infantil, 5,6 por mil. Como desprezar isso? Ditadura? Atraso econômico
e político? Ou prioridade em cuidar do homem? O progresso social como dever,
como fato, e não como meras palavras.
Pobres, a renda do povo cubano não
é difícil de entender, o Estado é o grande empregador, remunera de inúmeras
formas, e os benefícios fazem parte desta renda. Fiquei imaginando como seria
se não tivesse havido o bloqueio internacional ou se eles não tivessem continuado
apenas na agricultura da cana-de-açúcar para trocá-la com um único parceiro
comercial, mudando apenas, dos americanos que os espoliavam detendo o comércio
da exportação, pelos russos consumidores, em uma permuta sempre desfavorável. Será
que esse modelo de priorizar o ser humano em todas as possibilidades de
desenvolvimento não teria sido um exemplo?
A leitura que faço é que o
bloqueio os jogou no colo dos russos, que trocavam o açúcar que produziam obsessivamente
por petróleo e quinquilharias na maioria das vezes. Percebi vestígios disso em
muitas coisas que vi. Com o fracasso econômico da União Soviética, nem petróleo
nem quinquilharias havia mais pra trocar e demoraram muito para sair da única
opção econômica que escolheram.
Hoje se percebe o esforço em
muitas frentes, uma, talvez a principal, seja o turismo. Com ele a preocupação
internacional com o patrimônio arquitetônico, principalmente de Habana Vieja. Mas
identifiquei também a quebra não oficial do bloqueio feita por muitos países,
principalmente os mais independentes da influência americana, tardio sim. Nem
por isso menos importante.
A madrugada parecia conspirar com
minhas reflexões me dando o tempo passando devagar até o nascer do sol sobre
Havana. Da sacada, emocionado, contemplei aquela cidade linda e maltratada e
sua gente corajosa e cordial, certamente ainda dormindo, e a fotografei
compulsivamente.
Saímos pela manhã depois de
decidir o itinerário pelas Províncias e tentar novamente, sem sucesso, alugar
um carro. Impressiona o número e a simplicidade dos museus de Havana, mais
ainda o cuidado de cada pequeno pedaço da memória e história deles. As obras do
Museu Nacional de Belas Artes e as do Museu de Havana não me impressionaram
muito, mas a organização sim. Parecia que em algum momento, durante a
revolução, sumiram com os acervos. A beleza da arquitetura do casario e o fato
de encontrarem-se nas igrejas obras de maior valor artístico me levaram a supor
isso.
O Museu da Revolução está
instalado em um prédio belíssimo. Nele passamos mais da metade do dia
percorrendo cada sala. Ali estava a história que tanto emocionou a juventude da
minha geração. Durante a visita relembrava ao Marcelo pontos de nossas
conversas em sua adolescência. Numa das últimas salas, em tamanho natural,
Guevara e Camilo Cienfuegos, feitos com resina e trajando suas próprias roupas
e adereços. Foi uma das coisas mais bonitas e emocionantes que vi em Havana. Pareciam
vivos, estavam vivos de alguma forma.
Não consegui descobrir qual resina
era aquela e nem o autor, somente um grande artista poderia conseguir aquelas
expressões. Tentei a fotografia, mas não era permitido. Ficou a lembrança na
fotometria da emoção.
Visitamos o Instituto Cubano del
Arte e Indústria Cinematográfica, primeiro organismo cultural criado após a
Revolução cubana, e a lojinha onde são vendidos cartazes de filmes usando a serigrafia
como técnica de impressão. Uma arte simples e de espantosa criatividade, são
famosos por isso. Enquanto Marcelo e Germana escolhiam alguns cartazes para levar,
fui dar uma volta pelas imediações e acabei entrando num banco de sangue onde
conversei demoradamente com a única funcionária que me contou da prioridade da
medicina preventiva praticada no país.
Depois um café e a espera na
frente do clube de cinema observando a variedade das marcas dos carros antigos,
esperando ver uma Rural, um DKV ou um Gordini, que acabei não vendo. Muitas unhas
postiças decoradas nas mulheres, e as pessoas totalmente de branco cumprindo o
preceito religioso dos iorubás ou santeria de andar assim durante um ano, bem
diferente dos costumes religiosos de nossa descendência africana. Dali tomamos
um táxi lotação – um Chevrolet 58 onde nos acomodamos junto com quatro outros
passageiros.
Os dois dias seguintes foram
percorrendo museus, revisitando praças e interagindo mais com Habana Vieja, uma
sensação de fazer parte daquelas ruas.
O horário estabelecido para a
saída do ônibus foi cumprido com precisão de minutos, Viñales na província de Pinar
del Río nosso destino. Na saída o taxista nos indicou uma família
que poderia nos hospedar, e foi lá que ficamos. Na região fica a Cordilheira de
Guaniguanico, a Sierra del Rosário e a cidade de Viñales, na Serra de los
Órganos, um lugar de impressionante beleza. Rios subterrâneos, caminhos
naturais cavados na rocha, paredões enormes, mas o que me chamou a atenção
primeiro foi a casa de frente de onde estávamos. Pintado em sua fachada “Abuelos”
onde pessoas de idade passavam o dia juntos e à noitinha voltavam para suas
famílias. Depois foi o filho da nossa anfitriã, rapaz de uns trinta anos, com
quem conversei muito naqueles dias. Ele, um especialista em consertar carros ou
adaptar peças de uns em outros. Fazem isso usando até peças de tratores. O
conhecimento para essas adaptações foi adquirido na prática e na soma de
experiências.
A hospedagem em casas de família
hoje é permitida, e isso os ajuda na renda familiar. Família de origem rural, o
pai plantador de fumo só conheci no último dia e, com a ajuda do filho mais
desembaraçado em entender meu português espanholado, pude saber um pouco da sua
lida. O fumo que produzia era de qualidade excepcional, o preferido de Guevara,
me presenteou com um amarado de doze em folha de bananeira e pude comprovar sua
excelência. Desde o bisavô, a família plantava tabaco e, pelo clima da região e
o esmero da prática familiar, dali saíam charutos cobiçadíssimos. Todo o
processo não era muito diferente do nosso fumo de rolo, que já conhecia bem,
exceto pelos grandes galpões que usam na secagem, limpa e vira das folhas e, é
claro, na qualidade da semente que dá folhas maiores.
Nos dias que passamos ali, andamos
por todo o complexo de cavernas e morros e provamos pratos da culinária local, muito
saborosos e que lembram muito a nossa. O arroz com galinha e birra, que é um tempero parecido com o
nosso açafrão, pode ser confundido com nossa galinhada goiana.
Uma noite saímos para uma festa,
uma noite muito fria, e o que considerei uma caricatura da música cubana nos
desanimou e fez com que saíssemos sem demorar. Na manhã seguinte voltamos para
Havana, onde resolvemos passar dois dias antes de seguirmos para Cienfuegos.
O hotel que ficamos era simples e
confortável, ficava de frente para o Molecón. Também tinha um bar/café
funcionando dia e noite e nele meus curtitos.
Quando acendi o cigarro vi o jato d’água na enorme vidraça que dava para a rua.
Tirei imediatamente a máquina da bolsa e fotografei o ensaboar e secar do vidro
deixando transparecer o Molecón e o mar. Quando terminei e pedi outro café, o
rapaz que me atendia me perguntou da máquina fotográfica, pediu pra ver, era
fotógrafo, dali entabulamos uma demorada conversa sobre fotografia, e ele
combinou de levar no outro dia seu trabalho e o equipamento que tinha para me
mostrar.
E foi o que fez. Quando nos
mostrou uma Rolleiflex digital
e suas fotografias, ficamos boquiabertos com a máquina, com a qualidade das
fotografias e com o olhar dele. Um apaixonado com uma sensibilidade rara,
atestou Marcelo.
Durante o dia andávamos por Habana
Vieja, prédios restaurados e os pequenos museus e, na primeira noite,
assistimos ao Quebra Nozes no Gran Teatro de Havana. Quando chegamos não havia
mais ingressos, mas encontramos uma pessoa que nos ofereceu cortesias por um
valor muito menor que a bilheteria. A cortesia como chamavam eram ingressos
para cubanos, assim entramos. O teatro, tanto em sua beleza quando na acústica
perfeita, é uma obra de arte. Ao lado da sala de espetáculos, mas dentro do
prédio, um café ao ar livre que atende os intervalos. A apresentação foi de
arrepiar, orquestra, dançarinos, figurino e a primeira bailarina, cujo nome até
hoje me penitencio de não ter gravado, fizeram uma noite inesquecível.
Na manhã do dia seguinte,
assistimos à mesma orquestra tocando em frente ao teatro por duas horas. Composta
de músicos de todas as idades. Dava para perceber o olhar dos mais jovens
apurando a técnica com os mais experientes.
Visitamos um centro de cultura afro,
mistura de museu e espaço de santeria, onde identificamos várias doutrinas reunidas. Um hotel restaurado e muito
imponente e andamos muito no entorno com uma parada na praça de frente à Rua
Brasil, onde finalizamos o dia depois de passar na sede da Assembleia Nacional na qual
não pudemos entrar devido à hora.
No outro dia, no fim da manhã,
saímos para Cienfuegos, parte da viagem pela principal estrada cubana, onde
pudemos observar o desenvolvimento de outras culturas fora a da cana e a beleza
do rebanho de gado ainda muito pequeno, mas indiscutivelmente de qualidade.
Chegamos a Cienfuegos no finzinho
da tarde, tomamos um táxi, um Ford dos anos 40, e saímos procurando um hotel.
Depois de muito andar encontramos um único quarto. O taxista ficou esperando e
quando voltamos da recepção veio ao nosso encontro e pediu que retirássemos as
malas pela viela no fundo do hotel, pois ele tinha a licença vencida e os
guardas estavam parados no outro lado da rua.
O prédio, um casarão recém-restaurado,
estilo francês, era muito bonito. Tudo novo e fiel nos mínimos detalhes. Um
colchão a mais e dormimos os três como se estivéssemos na França. Cienfuegos
foi fundada por franceses vindos de New Orleans e é a cidade portuária mais
importante de Cuba e uma das Províncias que mais se destacou na produção da
cana-de-açúcar.
Acordei as 5 horas e por intuição
subi no terraço para fotografar o sol nascer e sentir o frio moderado que fazia,
com a certeza de que seria arrebatador. E foi. De repente, Marcelo e Germana
aparecem como se também tivessem sido atraídos pela manhã, dançaram como dois
bailarinos franceses iluminados pelos primeiros raios de sol.
No nosso roteiro, o previsto era
ficar apenas um dia e duas noites em Cienfuegos, mas ficamos algumas horas a
mais, uma vez que ainda não tínhamos as passagens para Trinidad compradas. Deu
tempo de conhecer o Parque José Martí e a Catedral de Cienfuegos. Das
Províncias por onde andamos, Cienfuegos foi onde mais vimos restaurações
históricas concluídas.
Trinidad, em conjunto com o Vale de los Ingenios, é Patrimônio da Humanidade desde
1988, lembra muito a Cidade de Goiás, principalmente por seus telhados vistos
do alto da igreja, hoje transformada em museu, com muitas peças bélicas. Foi o
principal porto de entrada para o tráfico de escravos. Era dia 31 de dezembro e
resolvemos ficar num hotel à beira-mar, um pouco distante do centro. Deixamos
nossas malas e fomos conhecer suas ruas de pedra, como as de Goiás Velho, com
seus becos e as intactas casas espalhadas por ladeiras e ruas tortuosas. A
cidade parece encravada na Sierra Escambray, que empresta toda sua beleza para compor com aqueles telhados uma paisagem
única. Visitamos alguns museus e, à noitinha, a Casa de la Trova, uma espécie
de clube frequentado por músicos de vanguarda. Ouvimos um
conjunto tocar música instrumental de muita qualidade. Ao se aproximar da meia-noite,
Marcelo e Germana saíram para conseguir um táxi que nos levasse ao hotel. A
apresentação terminada, o lugar quase vazio, apenas um casal numa mesa, que
logo se levantou. Terminava meu rum quando dois músicos do grupo que acabara de
tocar sentaram-se à mesa de frente, um com um tambor parecido com atabaque, o
outro com o violão, e começaram a cantar e tocar bem baixinho Yesterdey, nada
mais belo do que aquilo naquela hora. Parecia um sonho a interpretação dos
dois.
Chegamos ao hotel cansados do tanto
que andamos e não conseguimos esperar a meia-noite. Cumprimentamo-nos, e cama.
Só que não consegui dormir, meu pensamento ia insistentemente para minha
infância, lembrava cada detalhe dela e fazia a comparação com o que via
naqueles dias. Parecia que o tempo tinha parado para eles, tudo era como no
tempo do meu passado. O senhor descendo a rua com a carne sustentada pelo
cordão enganchado no dedo era igual ao meu pai fazendo o mesmo nas ruas da
minha infância em Ipameri. As duas mulheres na varanda bordando, com os dois
aros sustentando o pano a ser bordado, era a imagem das minhas tias, na verdade
primas, que chamávamos de tias, na casa antiga que elas moravam. Na mesa, como
muitas vezes na infância, arroz, feijão e uma mistura que era como chamávamos qualquer
verdura, legume ou proteína. Telhados iguais, carência igual, uma pobreza sem
miséria juntando passado e presente.
Ali, frente ao mar, sozinho,
assistindo ao longe os funcionários do hotel assar um leitão na fogueira, lembrei-me
da fisionomia calma do meu pai que, num dia como aquele, nos deixou.
O Brasil é um país grande, muito
rico, mas com muitas distâncias, sociais, culturais, e é injusto. Conviver por
aqueles dias com a vida de um país pequeno, pobre, mas sem distâncias sociais e
culturais foi de verdade uma confirmação de que muitas coisas sonhadas são
possíveis. Que a parte ruim pode estar num regime como o deles, assim como em
um como o nosso. Pessoas se perdem em suas histórias, os mais próximos do poder
talvez sejam os que mais são afetados por isso.
Em minhas conversas com o Marcelo,
dois eixos se impunham:
A comparação de Cuba com o Estado
do Maranhão ― Um, uma ditadura política consentida e o outro uma ditadura
econômica consentida mais pela apatia, ambos faziam 50 anos assim.
E na comparação do meu passado no
interior com o presente que estávamos vivenciando, apenas o tempo, 50 anos.
Dali seguimos para Santa Clara,
importante palco na tomada decisiva do poder pelos revolucionários e uma das
Províncias mais produtivas da Ilha.
Chegando lá, ao sairmos da
rodoviária, um senhor alto, muito simpático e falante, nos ofereceu acomodações
na sua casa. Analisamos a proposta, vimos a localização e, muito pela simpatia,
aceitamos. Ele era engenheiro agrônomo, sua mulher pintora. Viviam num
apartamento confortável nas ruas centrais de Santa Clara. A senhora, muito
falante e simpática, era uma mãezona fosse quando servia o café da manhã ou
quando nos mostrava seu trabalho, as fotografias de suas exposições ou as
matérias em jornais. Uma pintura meio primária, mas que me agradou.
Nosso anfitrião, quando chegamos e
nos acomodamos, nos serviu um cálice de rum que foi o melhor que tomamos na
viagem toda. Durante o tempo que ficamos lá, ao chegarmos à noite, sempre no
criado mudo um cálice de rum.
Em nossas conversas fiz uma
observação da qualidade do gado que via nos nossos deslocamentos pelas
províncias. Ele me contou que o rebanho estava sendo monitorado para crescer,
produzir mais leite e acabar o pouco consumo de carne bovina na Ilha, e que a
base deste crescimento e controle estava sendo conseguida com a inseminação e o
sêmen que vinha do Brasil. Com ele pude confirmar minha suposição de que o
planejamento econômico deveria ter sido feito em outros setores agrícolas, e não
baseado só na cultura da cana-de-açúcar e no fumo. Perguntei sobre a
possibilidade de esta decisão ter se baseada na bacia hidrográfica da ilha, o
que ele descartou me mostrando um levantamento hidrográfico com muitos rios de
pequeno curso.
Hoje existe investimento muito
grande na produção, já consolidado desde a queda do bloco soviético, em hortas
urbanas e no plantio familiar, produzindo grãos, cítricos, verduras, hortaliças
etc. que diminui os custos de transporte, defensivos e a necessidade de muita
tecnologia. Pelo mesmo motivo se busca com isso também não ter uma grande dependência
do petróleo com antigamente.
Em curso a maior conversão de agricultura
com dependência de produtos químicos para a orgânica ou semiorgânica e o
incentivo às atividades familiares.
Naquele mesmo entardecer, saímos
para a praça principal de Santa Clara. No coreto uma orquestra tocava parecendo
dia de festa, como se fosse uma data importante, mas não, aquilo era
corriqueiro para eles e dava pra perceber nas pessoas o convívio que não via
fazia tempos. Crianças, jovens, adultos e pessoas de mais idade conversando e
convivendo com boa música e o anoitecer.
De manhã, fumava na pequena
varanda observando a rua quando vi o cavalo que puxava uma carroça. O animal,
com a devida fralda, urinava, e o carroceiro do lado esperando com um balde de
água nas mãos. Nosso anfitrião ao meu lado percebendo minha curiosidade contou
ser obrigatório o uso da fralda, era uma questão ligada à saúde pública, e não
à administração, assim como toda limpeza urbana. Perguntei por que o balde de
água, ele me respondeu que, quando o animal urina, o carroceiro lava o local.
Tomamos café da manhã e não
resisti, pedi um cálice do rum e perguntei da sua procedência. Rum da província
– me respondeu. Que bebida! Ainda hoje quando me lembro do sabor não tenho
nenhuma dúvida de nunca ter tomado um rum como aquele.
Ao caminhar pela cidade, fui
constatando o rigor com a limpeza urbana e me deparei com entulho nas margens
de um córrego, fiquei surpreso, mas no outro dia passamos novamente pela ponte
e o entulho não estava mais lá.
Santa Clara tem a segunda maior
universidade de Cuba e foi, pela sua importância em ter definido a vitória da
revolução, tendo à frente de sua tomada Guevara e Cienfuegos, o lugar escolhido
para o Museu e Mausoléu de Ernesto Che Guevara. Sua estátua pode ser vista a
distância. Contracenando, um mural em relevo com cenas da época da guerrilha
circulado pelo pequeno jardim. A simplicidade do conjunto chama a atenção. Em
sua construção, o povo de Santa Clara contribuiu significativamente com
trabalho voluntário.
Ali passamos algumas horas entre
documentos, cartas, fotografias e objetos. Eu, desvendando alguns detalhes,
Marcelo e Germana descobrindo Guevara. Na saída do museu o Mausoléu, encravado
no chão estão sepultados os companheiros que com ele morreram na Bolívia, na
parede a fotografia de cada um deles. Na de Guevara, apenas uma projeção
desenha, em luz, a estrela solitária.
Dali saímos emocionados e ficamos
sentados na escadaria em silêncio e algumas lágrimas por um longo tempo.
Independente de opinião política,
é difícil não admirar a história e a paixão estampada na vida de dois homens
que se entregaram, totalmente ao que acreditavam. Ainda mais quando suas
convicções estiveram acima de circunstâncias. Difícil não admirar Camilo
Cienfuegos, morto prematuramente num acidente misterioso, e Guevara, retratado
pela crônica fotográfica por onde andou como símbolo do movimento
revolucionário e verdadeiro em suas crenças.
Naquele fim de tarde, encontramos
um pequeno bar numa das esquinas da praça principal, nele um conjunto de cinco
músicos tocava música cubana. Entramos e ficamos em pé no balcão. Bar cheio,
pessoas muito hospitaleiras e músicos maravilhosos. Não teve como não comparar a
qualidade do que ouvíamos com o “Buena Vista”, que fez tanto sucesso reunindo
compositores, músicos e cantores cubanos.
Os músicos liderados por um senhor
de idade que veio falar comigo, talvez por perceber minha atenção de total
interesse pela música que tocavam. Conversamos bastante nos intervalos em que
outro cantor o substituía. Todas as músicas que ouvimos eram composições deles,
de outros autores de Santa Clara e de outras províncias. No final ele me disse
onde se apresentariam novamente e foi assim que os seguimos em todos os dias
que ficamos na cidade.
De Santa Clara pegamos um táxi
para Cayo Santa Maria com uma parada rápida em Remédios, pequena cidade onde
apenas conhecemos a igreja com seus treze altares de ouro e num deles a inusitada
imagem de Nossa Senhora, a virgem imaculada grávida. Vimos também os restos das
alegorias da festa popular Parrandas de Remédios, tradição originada desde o
século 18 na cidade e que se espalhou por outras localidades. Realizada na
noite de 24 de dezembro, dois bairros disputaram uma barulhenta batalha de
fogos de artificio numa rivalidade parecida com a do Festival Folclórico de
Parintins, no Amazonas, realizado na quadra junina, onde se rivalizam o Boi
Garantido e o Boi Caprichoso. Ali o mais barulhento vence.
Antes de seguir viagem, fui
procurar um curtito, acabei me
conformando com um café de coador mesmo. Em poucos minutos de estrada, vimos a
monumental e premiada obra rodoviária Pedraplén Caibarién-Cayo Santa María, estrada construida
sobre o mar do Caribe
que liga a ilha de Cuba à pequena ilha onde fica o hotel.
Um resot da rede Meliá, que não esperava encontrar. Só depois fiquei
sabendo de um tipo de sociedade do governo com a rede espanhola que se
prolifera aproveitando o potencial turístico que a beleza natural potencializa.
Nos dias que lá passamos, muita
praia, sinuca, uma banheira espetacular, os curtitos
e muito papo com os funcionários da lanchonete. As madrugadas silenciosas na
praia olhando o céu cravejado de estrelas e o mar do caribe, calmo naquelas
noites, e a experiência de passar uma noite inteira com o Marcelo na praia,
esperando a fotografia especial do céu recamado de estrelas que ele tanto
queria tirar e acabou não dando muito certo, foram momentos inesquecíveis e de
muito frio.
Impressionado fiquei com as praias
de Cayo Santa Maria, por ser ilha vulcânica, o mar é profundo bem perto da
praia, com poucos passos a água já tem dois metros de fundura. É tão límpida
que num passeio que fizemos, navegando a uns 200 metros da praia, conseguíamos
ver o fundo. O condutor da vela que nos levou leu a fundura no marcador, oito
metros.
Meus curtitos na lanchonete, principalmente nas madrugadas, possibilitaram
contatos e conversas mais longas com seus funcionários. O que me fez entender
melhor o funcionamento do complexo turístico que construíram ali. Muitos hotéis
com o padrão mínimo daquele. Os funcionários, todos cubanos, são treinados para
o atendimento turístico e moram numa mesma comunidade. A impressão que me ficou
foi de que demoraram muito para adotar o turismo como um dos pilares da
economia, talvez escaldados pelo passado. Antes da revolução, principalmente
Havana, era um antro de jogo, prostituição, drogas e corrupção. O filme Havana,
do diretor Sydney Pollack, é um retrato fiel do que foi Cuba, apesar de
ambientado nos dias da vitória dos revolucionários.
Num entardecer, procurando o melhor
lugar para fotografar o pôr do sol, me deparei com um canadense dando ou vendendo
algumas peças de roupa para um funcionário do hotel. Mais tarde encontrei
Marcelo e Germana na lanchonete e uma das funcionárias com quem sempre
conversava num animado papo. Como Germana fala espanhol, ficava tudo mais
fácil. Contei à garçonete o que vira na praia e perguntei se ela sabia o que
era aquela transação. Ela respondeu ser comum ganhar ou comprar objetos dos turistas,
não para uso, mas sim para vender.
Naquela noite refleti se não
deveria esquecer propositalmente minha mala quando saísse do hotel. Não o fiz, soava
como uma esmola e lembrei Luiz Gonzaga e Zé Dantas em Vozes da Seca: “uma esmola para um homem que é são ou lhe
mata de vergonha ou vicia o cidadão.”
Naquela conversa com a garçonete,
pudemos deduzir algumas coisas sobre o maior avanço na medicina que
conseguiram. O sistema todo é inteiramente voltado para a prevenção, e isso
explicava a indignação da moça ao nos contar um caso de família em que a complexidade
do tratamento ficava à mercê de uma fila de atendimento, furada frequentemente.
Um caso triste que nos deixou com lágrimas nos olhos junto com as da moça.
A volta para Havana fizemos num
voo saindo do aeroporto doméstico Las Brujas, bem perto do hotel, em um
avião para 30 pessoas. A vista dá uma dimensão da beleza do conjunto turístico.
Antes
do embarque, Marcelo me presenteou com a cópia da Constituição de Cuba, um
gesto simbólico que trespassou todas as nossas conversas, desde sua
adolescência até aquela viagem.
Em
Havana, voltamos ao hotel em que encontramos o nosso amigo fotógrafo para
passar o último dia e a última noite. Mal deixamos as malas, saímos para
conhecer a Casa de las Américas, fundada logo depois da revolução e voltada
para a cultura da América Latina e que promove anualmente um dos maiores
prêmios literários, nos quais já havia concorrido por quatro vezes, além de
manter uma correspondência esporádica. Esta visita foi adiada muitas vezes por
diversos motivos, talvez o maior fosse de querer conhecer mais, conviver mais
antes de visitar principalmente sua biblioteca e as pessoas com quem
correspondia. Para minha frustação, estava fechada, não abria nas segundas.
Frustados,
resolvemos ir para o começo do Malecón e arredores. Terminal portuário, museus
que ainda não tínhamos entrado, a igreja ortodoxa recém-reformada, duas
galerias de arte e, por fim, o retorno andando por Habana Vieja.
De repente, passando por uma
ruazinha, três garotos de mais ou menos uns dez anos improvisavam um jogo de baseball, ao nos ver, o que parecia e era o mais esperto deles veio correndo e se
abraçou comigo pela cintura, de uma forma intensa, e fez o mesmo com o Marcelo
e voltou a me abraçar e, revesando os abraços, fez isso muitas vezes, seus avós
que observavam tudo quiseram se desculpar sorrindo e pedindo para ele parar,
mas quando perceberam a nossa reciprocidade deixaram a alegria contagiar.
Assistimos à brincadeira deles por muito tempo entre fotografias e abraços. A
despedida foi com lágrimas nos olhos de todos. Uma comunicação intensa, coisa
de alma, sabe lá! Tenho sempre na lembrança esse momento muito especial.
Naquela noite não consegui dormir, fiz uma triagem
nas últimas fotografias tiradas, tomei umas doses de rum e uns tantos curtitos
no bar do hotel, arrumei a mala e passei horas olhando pela janela o bairro
vizinho, o que primeiro conhecemos em Havana, com seus varais improvisados,
suas fachadas esmaecidas pelo tempo, e aí bateu uma saudade da minha vida de
cinquenta anos atrás.
2010/11
MQ
Primeira leitura e revisão Paulo
Fraga
FOTOGRAFIAS